- Volume 2
- Século: XX
- Estado: MA
- Etnia: Parda
- Atividade: Defensora da Reforma Agrária
Descrição:
Por Patrícia Negrão
A neta faz arte. A avó põe de castigo. Atrevimento no sangue, a criança responde: “Espera só meu pai chegar. Conto tudo pra ele, que é valente como você”. Valentia que não passa despercebida nem pela menina de 3 anos. Valentia que fez de Raimunda Gomes da Silva uma lutadora numa das regiões mais violentas do país, o Bico do Papagaio, ao norte de Tocantins.
Olhos marotos, sorriso fácil e coração enorme, essa maranhense torna-se uma leoa quando vê desrespeitados os direitos de qualquer minoria. Primeiro ela disse “não” ao machismo urbano. Jovem, abandonada pelo marido, trabalhou duramente em Curralinho, interior do Maranhão, onde nasceu em 1940. Era vítima de preconceito por ser “descasada e sozinha”. Recebia propostas de homens mais velhos, que prometiam casa e conforto caso ela se tornasse sua amante. Sem perder o humor, seguia na árdua lida diária para dar de comer aos seis filhos pequenos.
Aos domingos, dia de descanso, buscava conforto nas reuniões comunitária da Igreja Católica. Um dia, viu um porco dentro da Igreja. Não se conformou. “Os evangélicos tinham um lugar bonito e nós rezando naquele barracão de taipa.” Mobilizou os católicos, fez quermesse, arrecadou dinheiro, conseguiu adeptos para construir o novo espaço. “Em poucos meses, tínhamos uma igreja nova. O padre ficou feliz que não me largava mais.”
Raimunda dava aulas sobre religião e cuidados com a saúde e educação. Percebeu, então, muitas trabalhadoras rurais discriminadas e desvalorizadas em casa e no trabalho. “Eu via o sofrimento das companheiras pobres e sem estudo como eu. Sofriam as solteiras e as casadas, seus filhos e filhas, crianças como as minhas, abandonadas pelo pai.”
Raimunda, aí, estendeu o “não” para o machismo no campo. Com jeito simples e otimista de falar e rapidez no agir, ela ouvia as mulheres. E se fazia ouvir. Levantava a auto-estima de quem batesse em sua porta: mães solteiras, casadas vítimas de violência doméstica, prostitutas exploradas por gigolôs.
Despertava em Raimunda o espírito de comando e justiça que a tornaria, muitos anos depois, a “Dona Raimunda do Coco”, uma das lideranças mais carismáticas e respeitadas na luta por reforma agrária. Já recebeu muitas ameaças de morte e enfrentou policiais, fazendeiros e políticos na briga por terra. Atualmente, entre outros cargos, ela coordena em Brasília a Secretaria da Mulher Trabalhadora Rural Extrativista, que atende cerca de oito mil mulheres em oito Estados da Amazônia.
Rodou muita estrada e precisou usar muito de sua valentia até chegar lá. Em 1979, Raimunda saiu do Maranhão com os filhos pequenos e foi viver em Sete Barras, no Tocantins, onde o irmão possuía um pedaço de terra. No local moravam 52 famílias, amedrontadas e ameaçadas por grileiros. “Vi ali não somente mulheres, mas também homens sofrendo.”
Pouco tempo depois de instalada no assentamento, ela já participava de manifestações, conversava e reunia os homens e mulheres do campo. Unia-se à Pastoral da Terra e a outras lideranças e fundou, com eles, o sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Sebastião de Tocantins. “Apesar da distância entre as comunidades, conseguimos 552 sócios.” Continuaram resistindo até que, em 1985, foram expulsos das roças por policiais. “Queimaram nossas casas e nossas plantações. Não tínhamos o que dar de comer a nossas crianças nem onde morar.”
Por pressão do sindicato, voltaram ao assentamento. Mas os conflitos aumentaram. Padre Josimo Tavares, importante aliado dos lavradores, foi assassinado. Raimunda viajou a várias capitais do país para denunciar o crime. Deu entrevistas nas principais redes de televisão, fez contato com ONGS e com políticos. Retornou para casa conhecida em todo o Brasil. As ameaças voltaram-se contra ela. Porém, um ano depois, obtiveram a posse da terra.
Mas faltava roça para muitas famílias e Raimunda continuou na briga por reforma agrária. Em 1988, participou da criação da Federação dos Trabalhadores Rurais de Tocantins. Começou também a militar pelos direitos das quebradeiras de coco babaçu. No final dos anos 1980 e início dos 1990, as agricultoras extrativistas do Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins se organizaram em associações para lutar pela preservação do babaçual. – que estava sendo queimado pelos fazendeiros – e pelo direito legal de acesso livre nas propriedades particulares para colher coco.
Com algumas companheiras, Raimunda organizou, 1992, a Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio (ASMUBIP). Começaram a promover encontros para discutir direitos – primeiro nos municípios mais próximos e, em seguida, nos estados vizinhos. Participaram, então, da fundação do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), que atinge os quatro estados.
Comemoraram conquistas: muitas crianças hoje já não precisam quebrar mais coco, não há mais a figura do atravessador – homem que negociava o produto – e a lei proíbe a derrubada das árvores. Calcula-se que no país haja mais de dezesseis mil mulheres vivendo da venda do coco. Por sorte, entre elas há sempre as “Raimundas”: valentes, fortes e lutadoras por um país mais justo.
Eu não quero morrer matada, quero morrer na cama
Texto publicado no livro: CHARF, Clara (coord.). Brasileiras guerreiras da paz: projeto 1.000 mulheres. São Paulo: Contexto, 2006.