No Portal: Sexismo e Diversidade Sexual da autora Li Travassos.
SEXISMO E DIVERSIDADE SEXUAL ¹
Li Travassos
Eu gostaria de iniciar a minha fala em nome da psicologia brasileira, através da resolução n.º 1 de 1999, do Conselho Federal de Psicologia, a qual “estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual”, e afirma que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão; e no seu art. 3°, proíbe o psicólogo de exercer “qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, ou adotar ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”. Em linhas gerais, esta resolução proíbe o tratamento do homossexual, se este visar a transformação do homossexual em heterossexual – mesmo que isto tenha sido solicitado pelo próprio paciente. Alguém poderia perguntar: mas por que não, se for o próprio paciente que solicitar o tratamento neste sentido? Primeiro, por que seria o mesmo que admitir que a homossexualidade é um distúrbio psicológico, por isso pode ser “tratada”, além de admitir que a orientação sexual poderia ser mudada via terapia – o que não é verdade. Em segundo lugar, isto abriria espaço para que os pais obrigassem os filhos “menores” a fazerem um tratamento psicológico visando a “conversão”.
Mas, se a psicologia brasileira afirma que a homossexualidade não é doença, em momento algum afirma, enquanto um todo, que a homossexualidade é inata. Evidentemente, há diversas “linhas de pensamento” na psicologia, e há profissionais de saúde mental com diferentes posturas com relação ao inatismo. Mas até mesmo aqueles que o defendem – o que, a meu ver, é uma postura a-histórica, que retira a responsabilidade da sociedade pela formação de seus sujeitos – falam de um inatismo dos distúrbios e doenças psíquicos, como a esquizofrenia ou a psicopatia. Não se pode falar de inatismo do desejo. Não se pode afirmar, ao mesmo tempo, que a homossexualidade não é doença e nem distúrbio, e que é inata.
E é preciso tomar muito, mas muito cuidado, com as posturas eugenistas, que pressupõe que, se algo indesejável pode ser previsto com a criança ainda no ventre da mãe, pode-se evitar o nascimento desta criatura, deixando assim de colocar no mundo mais uma pessoa com esta característica indesejada. No filme “Questão de Sensibilidade” ², de 1997, se pressupõe que o gene da homossexualidade pode ser isolado, e um geneticista, cuja esposa está grávida e tem um irmão gay, descobre que o feto tem o tal gene, que pode se manifestar ou não, mas com a prévia tendência familiar a chance é muito grande. E o filme se passa em cima da discussão sobre abortar ou não abortar este possível homossexual. Isto lembra, claro, o nazismo, onde as pessoas que iam para os campos de extermínio tinham uma figura pregada na roupa, sendo a dos judeus uma estrela de David amarela, e a dos homossexuais um triângulo rosa.
A revista Super Interessante de janeiro de 2011, que tem na capa a pergunta: “Destino existe?”, Afirma, na reportagem de nome “O destino está na sua mãe”, com base em uma pesquisa realizada com cerca de mil homens, por um psicólogo americano (Anthony Bogaert), que a cada vez que uma mulher engravida de um filho homem ela cria anticorpos com a finalidade de proteger o seu corpo feminino das proteínas masculinas produzidas pelo filho (seria parecido com o que acontece quando a mãe tem o fator rh do sangue diferente do que o feto apresenta). E a cada vez que a mulher engravida de um menino, estes anticorpos vão ficando mais potentes, sendo que a probabilidade do 5º filho nascer homossexual em função destes anticorpos seria muito grande.
Em nenhum momento este gênio da psicologia americana cogitou a possibilidade da criança tornar-se homossexual justamente para corresponder a um desejo da mãe de ter uma filha menina. Afinal, quem tem mais de 2 ou 3 filhos nos dias atuais, a não ser quem não consegue ter um filho do sexo que deseja? Ainda com base nesta pesquisa, a reportagem afirma que “de 15 a 25% dos gays desenvolvem a homossexualidade dentro do útero”. Nada é dito a respeito dos outros 75 a 85%, e para a homossexualidade de mulheres, não é oferecida nenhuma explicação. Contudo, a reportagem termina afirmando que, a serem comprovadas estas pesquisas, “acabaria de vez a crença de que a homossexualidade é reversível”.
Eu sei que quem faz a defesa da homossexualidade inata visa justamente evitar que se considere a possibilidade de reversão da mesma – pois se foi aprendida, poderia ser desaprendida. Mas o fato é que não é inata e ao mesmo tempo não pode ser revertida. E como se explica isto? Ora, a homossexualidade é uma orientação sexual. E o que é, de fato, orientação sexual? Há quem considere que orientação sexual se resume a ser hetero, homo, ou bissexual. Eu discordo. Em minha opinião, orientação sexual é um conjunto de características físicas que o outro deve ter para que eu sinta desejo por ele. Ou seja, a orientação sexual determina se eu vou desejar pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente, pessoas morenas ou loiras, pessoas com muitos pelos ou não…
E como a orientação sexual se dá? O que “nos orienta”? Em primeiro lugar, é preciso diferenciar “orientação sexual” de “educação”, pois dificilmente alguém irá educar conscientemente um filho para se tornar homossexual (principalmente se levar em conta todas as dificuldades sociais que os homossexuais enfrentam). Se quisermos nos basear no velho e bom Freud, e no ainda mais velho Édipo, a orientação sexual depende da fixação afetiva que a criança fará com o pai ou com a mãe, ou ainda com algum outro parente, amigo da família, etc. E também dos desejos inconscientes desta pessoa “eleita” pela criança. E isto não é previsível, controlável, ou possível de modificar. É claro que Freud era preconceituoso, que considerava a homossexualidade um distúrbio psíquico, que quando resolveu classificar os distúrbios em psicose, neurose e perversão colocou a homossexualidade na lista de perversões (juntamente com o masoquismo, o sadismo, etc.), mas, em minha opinião, a despeito de tudo isso, ele ainda está certo sobre como nossa orientação sexual “acontece”. E não é possível discutir sexualidade dentro do âmbito psicológico sem fazer referências à psicanálise.
Mas se alguém prefere rejeitar totalmente a teoria psicanalítica, pode buscar entendimento na teoria sócio histórica da aprendizagem, de Vygotsky, que afirma que as pessoas transformam o mundo e são por ele transformadas o tempo todo, no melhor estilo “nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio”. Por isso, de acordo com sua teoria, que também não se baseia no inatismo, não se poderia modificar a orientação sexual de uma pessoa.
E se até ontem nós só tivemos famílias no melhor estilo papai/homem x mamãe/mulher, e assim mesmo sempre houve um grande número de pessoas homossexuais, é sinal de que o fato de um casal ser heterossexual não garante que seus filhos também o serão, e que o fato de um casal homossexual adotar uma criança não irá levá-la, necessariamente, a ser homossexual também (não que isto fosse uma tragédia, mas é a principal justificativa usada por aqueles que são contrários à adoção por casais homossexuais).
Mas eu penso que o que provoca mais irritação e rejeição nas pessoas que têm preconceitos contra a diversidade sexual, não é de fato a questão da homossexualidade, e sim do comportamento considerado inadequado em relação ao que a sociedade determina como sendo correto para o sexo com que nascemos ³. Até porque, para algumas pessoas, homem muito masculino e mulher muito feminina nem são considerados homossexuais, mesmo que sejam assumidíssimos. E pessoas que se comportam de forma diferente daquela esperada para seu sexo biológico não são bem aceitas, quer sejam homossexuais ou não. Aliás, todos acham que estas pessoas são homossexuais, inclusive no meio LGBT e nos movimentos feministas. Eu mesma, por não ter um jeito muito feminino, nem me submeter a alguns rituais de beleza comuns a maioria das mulheres, como pintar unhas, cabelos, usar brincos, etc., sou considerada homossexual por diversas pessoas. Mas não sou. Sou apenas uma mulher não muito adaptada aquilo que a sociedade brasileira, no século XXI, espera das mulheres.
É preciso então diferenciar orientação sexual (que tipo de pessoa eu desejo) de identidade sexual (com que sexo eu me identifico) e adaptação ao gênero (o que a sociedade espera de pessoas do meu sexo, e o quanto eu me adapto a isto). Repetindo para deixar bem claro: nem toda pessoa homossexual age de forma diferente daquilo que é esperado para aquele sexo, nem toda pessoa que age de forma diferente daquela esperada para seu sexo é homossexual e, para além de tudo isto, há aquelas pessoas que não se identificam, em absoluto, com seu sexo biológico – ou seja: homens que se sentem mulheres e mulheres que se sentem homens.
Os piores preconceitos serão sempre contra aqueles que não se adaptam ao que a sociedade espera de quem nasceu com seu sexo biológico. Nos homens, o comportamento mais feminino é considerado ridículo, porque o homem teria nascido com o todo o poder que a sociedade lhe confere, e abriu mão dele. Nas mulheres, o comportamento mais masculino costuma despertar ódio, pois é como se ela estivesse pleiteando um poder ao qual não tem direito por nascimento. O preconceito voltado para o homoerotismo propriamente dito é apenas uma manifestação da dificuldade das pessoas de serem lembradas de que o sexo não visa necessariamente a procriação, mas sim o contato afetivo e o prazer.
Está na hora de nós aceitarmos as pessoas como elas são, sem colocar rótulos e fazer julgamentos a partir de nossas próprias experiências. Depois do direito à vida, à saúde e à segurança, penso que o direito de cada pessoa ser aceita como é, talvez seja o direito humano mais importante a ser respeitado. Se concordamos em partir do princípio de que o mal estar causado pela diversidade sexual tem como principal motivo o sexismo, então não há como as mulheres feministas e libertárias não se envolverem com a luta pelo fim da homofobia, e não há como o movimento LGBT não se envolver com a luta feminista.
Claro está que muitas mulheres que se dizem feministas estão se coçando para os movimentos de direitos dos homossexuais. E claro está também que o fato de um homem ser homossexual não faz dele, necessariamente, um defensor da igualdade entre homens e mulheres. Está na hora, pois, de juntarmos em uma mesma luta as pessoas voltadas para o fim da intolerância, para o fim da discriminação, para o fim da desigualdade social, independentemente de sexo, raça, etnia, renda, religião, orientação sexual, identidade sexual, ou o que quer que seja que nos diferencie, lembrando sempre que somos eminentemente seres humanos. Quem quer que acredite em qualquer forma de superioridade ou de diferença irreconciliável não tem como fazer parte desta luta, a não ser de forma muito equivocada.
- Fala de participação de Li Travassos na mesa redonda: “Diversidade sexual na perspectiva dos direitos humanos”, no “Seminário de enfrentamento ao sexismo, lesbofobia, homofobia e transfobia”, onde representava o Sindicato dos Psicólogos de SC. O Seminário fez parte de uma série de atividades promovidas pela Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para as Mulheres de Florianópolis, relacionadas ao 17 de maio – DIA INTERNACIONAL CONTRA A HOMOFOBIA. Foram feitos alguns ajustes no texto, em função de comentários posteriores.
- Direção de Ross Marks, com Brendan Fraser e Faye Dunaway.
- Vale lembrar que os relatos sobre homens homossexuais que são agredidos ou assassinados nas ruas do Brasil, dificilmente se referem a homens que estavam beijando outros homens na rua, e muito menos fazendo sexo com outros homens. São casos de homens homossexuaisque estavam simplesmente andando na ruae foram violentamente agredidos. Obviamente, por seus trejeitos femininos. A homofobia é portanto, basicamente, uma forma de sexismo.