- Volume 2
- Século: XX
- Estado: PE
- Etnia: Branca
- Atividade: Mãe de desaparecido político
Descrição:
Por Patrícia Negrão
Na casa de muita história e dignidade, onde viu os dez filhos crescerem e se tornarem gente de fibra, Elzira Santa Cruz Oliveira tem a sensação de escutar, até hoje, chamar por ela. “Velha Zita! Velha Zita! Era como o jovem fernando augusto de Santa Cruz Oliveira anunciava sua chegada à mãe. Até desaparecer, em 1974, vítima da ditadura militar.
Dona Elzita, aos 92 anos, continua com memória inabalável. Memória que a faz sorrir ao recordar os momentos alegres de uma família numerosa e unida. Memória que revolta e angustia ao reavivar os anos de um regime sem leis nem escrúpulos. Dói relembrar, mas não silencia: “Depois que perdi a esperança de encontrar Fernando, só me restou falar, para que um fato tão triste não caíssem no esquecimento”
A voz que fez ecoar Brasil afora em busca do filho está hoje mais branda, pausada. Retorna aos anos 1940. “Só comecei a viver, de verdade, quando me casei com Lincoln Santa Cruz.” Tinha 26 anos e já trazia no dedo duas alianças de uma viuvez precoce. Filha de um abastado senhor de engenho da zona da mata pernambucana, ela foi criada com luxo, “para ser esposa e mãe”. Aos 21 anos, casou-se, pela primeira vez, com um jovem político. Seis meses depois, o marido morreu de tuberculose.
Anos mais tarde, conheceu Lincoln, um médico sanitarista, diretor do Centro de Saúde de Caruaru. “Ele tinha uma visão diferente do mundo, era uma pessoa simples, um humanista”, recorda. Casaram-se e foram viver em Olinda. Ano após ano, a família ia crescendo. Em 1956, o casal comprou a casa na qual dona Elzita vive até hoje. O salário do médico era suficiente para dar boa educação aos dez filhos e encher a casa de livros. “Não havia televisão, então todos liam muito.”
À mesa também não faltava comida nem boa prosa para os muitos amigos. O verdureiro, um dos freqüentadores da casa, perguntou certa vez ao Dr. Lincoln o que era comunismo. A resposta do marido dona Elzita nunca se esqueceu: “Comunismo é como uma mesa bem grande, com todo mundo comendo junto e comendo da mesma comida”.
No controle da lida doméstica, dona Elzita mal sentiu os anos correrem. Até que com 53 anos de idade, se viu obrigada a enfrentar a dureza de prisões, quartéis, secretarias de segurança e órgãos de repressão, à procura dos filhos perseguidos. “O primeiro a ser preso foi Fernando, durante uma passeata estudantil.” Era menor de idade e passou uma semana no Juizado de menores, até que a mãe conseguiu que liberassem o rapaz. O ano era 1966. Jovens pernambucanos queimaram a bandeira dos Estados Unidos em frente a Assembléia Legislativa em protesto ao Acordo Mec-Usadque o Ministério da Educação e Cultura tentava implantar tendo como modelo o sistema de educação norte-americano. Ao receber a notícia de que o filho era um dos detidos, dona Elzita partiu para o Juizado de Menores. Lá persistiu até que soltassem Fernando.
A perseguição aos jovens Santa Cruz estava apenas começando. Tempos depois Marcelo, que cursava o quarto ano de direito e militava no Movimento Estudantil, foi cassado pelo decreto 477 e expulso da universidade. Passou um ano na Europa e retornou ao Rio de Janeiro, para onde se haviam mudado a irmã mais velha, Rosalina, e Fernando, que na época já estava casado e com um filho, Felipe.
Em 1972, Rosalina foi presa. Ao receber a notícia em Olinda, dona Elzita embarcou para o Rio. Dr. Lincoln, adoecido, ficou em Pernambuco. Foram três meses de busca, de quartel em quartel. Até que conseguiu a promessa de que iriam levá-la à filha, mas de madrugada e sozinha. No meio da noite, dona Elzita entrou em um carro blindado, entre policiais armados. Os parentes receavam que ela não voltasse. “Eles me disseram: ‘Dona Zita, não vá, a senhora vai cair no meio das cobras’. Mas por um filho, vou até para dentro do fogo.”
Ao descer do carro, em frente ao Primeiro Exército, os policiais perguntaram se ela era paraibana. “eles me acharam corajosa, porque eu estava séria, calada. Mas era medo mesmo.” Encontrou a filha com curativos e manchas no corpo. Ela disse para a mãe que havia caído. Dona Elzita sabia que eram sinais de tortura. Queriam que assinasse um papel atestando que a filha encontrava em perfeito estado. “Encontrei-a toda esbugalhada, eu não podia assinar aquilo e não assinei.”
Rosalina foi libertada em 1973. Um ano depois, em 23 de fevereiro de 1974, a família Santa Cruz foi, novamente, alvo da ditadura. No sábado de carnaval, Fernando saiu para se encontrar com um amigo, Eduardo Collier Júnior, Também militante da ação Popular. Nunca mais retornou.
Dona alzita, mais uma vez, deixou Olinda para percorrer os quartéis cariocas. Sem resultado, passou a escrever cartas e petições para políticos, militares, religiosos. Buscou ajuda de entidades nacionais e internacionais com Cruz Vermelha, anistia Internacional, Órgão dos Estados Americanos (OEA). Reuniu e encorajou outras mães – a maioria amedrontadas – a assinar manifestos. Mais tarde, memso com certeza de que o filho não voltaria , ajudou a fundar o Movimento pela Anistia em Pernambuco e o Partido dos Trabalhadores daquele estado. Foi à Argentina solidarizar-se coma as mães da praça de maio. Simboliza, hoje, todas as mães que tiveram seus filhos vítimas da opressão da ditadura militar brasileria.
Texto publicado no livro: CHARF, Clara (coord.). Brasileiras guerreiras da paz: projeto 1.000 mulheres. São Paulo: Contexto, 2006