- Volume 2
- Século: XX
- Estado: SP
- Etnia: Branca
- Atividade: Defensora dos Direitos Humanos
Descrição:
Por Patrícia Negrão
Choque elétrico, pau de arara, afogamento. Torturas bárbaras sofridas nas prisões do regime militar. Depoimentos ouvidos por Margarida Genevois na década de 1970, quando um setor da Igreja Católica abriu as portas aos perseguidos e ela foi trabalhar na Comissão Justiça e Paz da Diocese de São Paulo. Uma de suas atividades: receber pessoas que chegavam desesperadas de todo Brasil. Mães, pais, esposas, maridos à procura dos entes desaparecidos. Vítimas da repressão em busca de esconderijo e meios para deixar o país. “Muitos sentiam pudor em relatar o que tinham passado, tão terríveis e bestiais haviam sido suas experiências.”
Um mundo até então desconhecido para Margarida. Ao aceitar o convite de dom Paulo Evaristo Arns para fazer parte da Comissão Justiça e Paz, ela iniciou um trabalho que a tornaria, anos mais tarde, uma das maiores defensoras dos direitos humanos do país. Era a única mulher entre advogados e professores da Universidade de São Paulo (USP) atuando na Comissão. Os militantes da Justiça e Paz ajudavam na busca dos desaparecidos, tentavam obter proteção judicial aos presos políticos, escondiam e encaminhavam para fora do país pessoas perseguidas. Corriam risco de vida, mas não silenciavam. Denunciavam as arbitrariedades aos organismos internacionais. “Formamos um grupo unido, todos crescendo e aprendendo juntos”, recorda Margarida.
Vítimas das ditaduras da Argentina, Chile e Uruguai também chegavam à Comissão. No início, eram recebidos clandestinamente e escondidos em paróquias, conventos, igrejas. Porém, a procura por auxílio aumentou muito e a Cúria não conseguiu mais atender, sozinha, aos mais de mil refugiados que bateram à sua porta. Obtiveram, então, apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e puderam continuar a socorrer os vizinhos perseguidos.
Direitos humanos passaram a ser, para Margarida, tão fundamentais como o ar que se respira. Sufoca viver onde não estejam presentes. Restaurada a democracia no Brasil, Margarida continuou a pressionar autoridades e a delatar as injustiças contra milhares de cidadãos até hoje “asfixiados”: desempregados, camponeses sem terra, adolescentes infratores, presos em condições subumanas. “O discurso de direitos humanos é aceito na teoria, mas quando estes direitos são exigidos na prática, muitos se sentem incomodados, com medo de perder ou diminuir privilégios.”
Durante 25 anos Margarida atuou na Comissão Justiça e Paz de São Paulo, tendo assumido a presidência por três vezes. Nesse período, em caso de descumprimento dos direitos humanos ele estava presente, apoiando os perseguidos e denunciando as injustiças. Foi assim em Serra Pelada, ao lado dos garimpeiros, e no Bico do Papagaio, com os agricultores desta região ao norte do país onde foram assassinadas várias lideranças, entre elas Padre Josimo, coordenador da Comissão pastoral da Terra naquela localidade.
Margarida esteve à frente de importantes campanhas como o movimento a favor da anistia, contra a lei de Segurança nacional, contra a pena de morte, contra o Esquadrão da Morte. Testemunhou o desenterro de ossadas de desaparecidos, mortos pela repressão militar, e lutou para que as famílias recebessem informações a respeito dos falecidos.
Presenciou muitos tipos de injustiça, mas não perdeu a suavidade. Suave e firme, ela segue acreditando na transformação do ser humano. Isso desde muito cedo, quando fazia serviços voluntários nas favelas do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu em 1923. Mais tarde, já formada em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e casa com um empresário bem-sucedido, foi viver em Campinas, na Fazenda São Francisco, pertencente a empresa de produtos químicos Rhodia, na qual seu marido trabalhava. Lá, indignou-se com a pobreza dos trabalhadores e, sobretudo, com a falta de recursos básicos para as crianças. Reuniu as mulheres e com elas obteve a implantação de creches, posto de puericultura e clube de mães para os trabalhadores da região em que vivia. Fundou também o Jornal Feminino, voltado para as mulheres do local.
Intensa em tudo que faz desde a juventude, viu os resultados positivos: a mortalidade infantil diminuiu no local e o posto de puericultura tornou-se um modelo em Campinas. Em 1967, já de volta a capital paulista, margarida criou com Zita Bressane o Veritas – Centro de Formação Cultural e Promoção Social, que oferecia cursos para mulheres da classe média. Convidavam intelectuais para falar sobre assuntos da atualidade, incentivando com isso uma postura democrática e humanista e maior participação delas nos diversos movimentos sociais.
Premiada e homenageada inúmera vezes, Margarida atualmente faz parte da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, um projeto nacional que ajudou a criar em 1994. Por meio de cursos elaborados a partir da pedagogia de Paulo freire oferecidos a estudantes e profissionais de todo o país, a Rede reflete e incentiva o diálogo sobre direitos humanos. “Buscamos instigar o desenvolvimento do espírito crítico e a aceitação do ‘diferente’ no outro.” Por essa entusiasta militante, não bastam lais, é preciso que cada cidadão conheça e exija seus direitos.
Direitos humanos devem ser vividos em cada gesto, em cada atitude.
Texto publicado no livro: CHARF, Clara (coord.). Brasileiras guerreiras da paz: projeto 1.000 mulheres. São Paulo: Contexto, 2006.