Nesses mais de 500 anos da chegada dos europeus nas terras brasilis o papel histórico das mulheres na construção da sociedade brasileira, em geral foi invizibilizado. Se revisitarmos o passado poderemos constatar que elas estiveram presentes nos diferentes períodos da nossa história, protagonizando acontecimentos ou contribuindo positivamente para construção de uma sociedade igualitária e democrática através da perspectiva de gênero e da superação do racismo e do etnocentrismo. Portanto da colonização a contemporaneidade a mulher, também faz história:
Na colonização do Brasil – séc. XVI – A Coroa Portuguesa, diante de recursos limitados ou falta de interesse, delegou a tarefa de colonização de determinadas áreas a particulares, através da doação de lotes de terras a nobres e pessoas de confiança do Rei Dom João VI. Este sistema ficou conhecido como Capitanias Hereditárias. Entre as Capitanias que mais prosperaram estavam, exatamente, as que foram governadas, não exclusivamente pelos donatários que receberam a Carta de Doação, mas por suas esposas.
Podemos citar o caso de Ana Pimentel, procuradora de Martins Afonso de Souza, donatário da Capitania de São Vicente. Coube a ela a administração da capitania a partir de 1534. Implantou entre outras coisas, o cultivo da laranja, arroz, trigo e criação de gado. O importante papel desempenhado por Ana na administração da capitania não mereceu da história oficial o reconhecimento devido, embora ela o tenha exercido por mais de uma década. Também merece destaque dona Brites Mendes de Albuquerque, esposa de Duarte Coelho Pereira, donatário da capitania de Pernambuco. Em 1554, com a morte do marido e estando os dois filhos homens estudando em Portugal coube a dona Brites assumir o comando da capitania. Nesse período enfrentou às investidas dos indígenas hostis ao avanço dos portugueses, destruição dos engenhos e coordenou o trabalho de centenas de colonos e escravos até sua morte em 1584. Luisa Grimaldi assumiu a Capitania do Espírito Santo em 1589, após a morte do marido Vasco Fernandes Coutinho Filho. Em 1592, organizou a defesa da baía da Vitória contra a invasão inglesa. Essas mulheres representavam o rei de Portugal na colônia, exerciam plena autoridade no campo judicial e administrativo para nomear funcionários e aplicar justiça.
Em final do século XVI e início do XVII ocorreram as Entradas e Bandeiras, expedições empreendidas a época do Brasil Colônia. Estas iniciativas possuíam fins diversos, dentre eles, a exploração do território brasileiro, busca de riquezas minerais etc.
Dentre os bandeirantes, ou sertanistas, temos a atuação de algumas mulheres. Podemos citar Ana de Oliveira, natural de Vila Nova (BA), atualmente Sergipe. Aventureira, participou da formação de duas bandeiras ao lado do marido e irmãos com o objetivo de conquistar terras no sertão paraibano. Maria Diaz Ferraz do Amaral, colonizadora e bandeirante considerada a “Heroína de Capivari”, por lutar ao lado dos homens num confronto contra os índios Caiapós no interior de Goiás. Na sociedade colonial do século XVII, as/os indígenas e seus descendentes, tinham sua liberdade constantemente ameaçada. Foi assim que Ana Bastarda, índia, deixou um testamento, dentre outros objetivos, com a intenção de afirmar sua condição de mulher livre.
No século XVII o Brasil sofreu as conseqüências das disputas européias, muitas vezes sendo alvo de tentativas de invasão, o que demandava constante defesa do território. Iguaçu, índia da nação Tamoio, casada com Aimberê, importante chefe indígena, lutou ao lado dos franceses na disputa pelo domínio das terras da baía de Guanabara, onde morreu, em janeiro de 1567, na batalha decisiva em que os portugueses saíram vitoriosos. A colonizadora Inês de Souza foi uma das responsáveis pela defesa da cidade do Rio de Janeiro, na década de 1580, contra os corsários franceses. Para defender a cidade ela reuniu mulheres e crianças, vestia-as com armaduras masculinas e as fez simular manobras de defesa na praia. Outras mulheres também deram suas contribuições na tentativa de salvaguardar o território, como o caso de Ana Paes d’Altro, também conhecida como Ana de Holanda, provavelmente nascida na Bahia, por volta de 1605. Mudou-se para Pernambuco; seu engenho foi palco de um dos combates mais violentos da guerra contra os holandeses, para onde foram enviadas as mulheres e filhas dos principais líderes da revolta pernambucana, em agosto de 1645. As fontes da época descrevem-na como uma mulher poderosa, sedutora e de comportamento avançado constituindo-se assim numa figura emblemática e controversa durante o domínio holandês no Brasil.
O século XVIII foi período em que a mineração passou a dominar o cenário brasileiro, intensificando a vida urbana da colônia. A atividade mineradora, diferentemente da agricultura e de outras atividades econômicas, foi submetida a uma rígida fiscalização, onde a coroa reservava-se o direito ao quinto (quinta parte de todo ouro extraído). O controle da coroa evidenciava-se por rigorosa disciplina e fiscalização por parte da metrópole. Em 1732, a administração colonial, visando controlar a produção de ouro e diamantes da região das gerais, decretou a Demarcação, instrumento legal que expulsava da zona demarcada todas as mulheres libertas, negras ou mulatas. Ana Joaquina Perpétuo, vivendo na região aurífera de Minas Gerais, herdou do marido vários imóveis, embora considerada senhora de reputação ilibada da elite local, foi arbitrariamente expulsa da região com seus filhos menores, fato que demonstra a concentração de poderes nas mãos das autoridades coloniais. Figura emblemática da história brasileira – Chica da Silva, ex-escrava, enfrentou a sociedade colonial branca da época, na região de Diamantina, em Minas Gerais, para fazer valer seus direitos de ir e vir. Já no litoral baiano temos o destaque de Ana Sutil. Proprietária de um engenho açucareiro, obtida com a morte do marido, Ana possuía o título de Dona – marca de distinção hierárquica na sociedade. Destacou-se por ter sido uma das poucas mulheres a alcançar tal posição. No século XVIII na tribo dos Jucás (CE), nasce Ana de Faria, bisavó de Padre Cícero, de Juazeiro do Norte.
O século XIX foi período de grandes transformações sociais e políticas. A chegada da família real, Proclamação da Independência, revoltas, movimentos sociais e políticos de reivindicação, abolição da escravatura, Proclamação da República. Direta ou indiretamente as mulheres também foram protagonistas desses acontecimentos. Participaram de movimentos sociais, abolicionistas, lutaram por uma educação institucionalizada, reivindicando uma formação para além das “prendas domésticas”. Inúmeras revoltas populares, assim como a manifestação de atitudes que representavam a manifestação de uma sociedade em transformação e indivíduos ocupando novos papeis, marcaram a primeira metade do século XIX no Brasil, e as mulheres tiveram presença importante em muitos desses episódios. Citamos alguns exemplos:
Bárbara Pereira de Alencar, matriarca pernambucana que viveu na cidade de Crato (CE), participou da revolução republicana no nordeste, em 1817, sendo presa. A valentia e liderança de Ana Lins, envolvida na revolta conhecida como Confederação do Equador, em 1824, é até hoje um exemplo para as alagoanas. Maria Quitériaesteve presente, na Bahia, nas batalhas pela independência em 1822 e, em 1823, Joana Angélica foi assassinada por um soldado português, sendo a partir daí nomeada “Mártir da Independência”.
A cearense Maria Tomásia Figueira Lima, abolicionista, natural de Sobral, participou, em 1882, da fundação da Sociedade das Cearenses Libertadoras que lutavam pela abolição da escravatura. Maria Firmina dos Reis, educadora e escritora negra, natural de São Luiz (MA), considerada a primeira romancista brasileira, é de sua autoria a obra abolicionista ÚRSULA, publicada em 1859. Tia Ciata, quituteira, natural de Salvador, Bahia, foi uma grande referencia da comunidade negra no Rio de Janeiro, sua casa transformou-se no berço do samba. No início do século XVII a educadora potiguar Nísia Floresta, rompendo os padrões sociais vigentes, lutou pela educação de qualidade para as mulheres, escreveu textos questionando a supremacia masculina, publicou livros e é considerada uma das primeiras feministas brasileiras.
Embora a Constituição de 1891 vetasse o direito de voto aos analfabetos, mendigos, soldados e religiosos, sem mencionar as mulheres, elas ainda tiveram que lutar muito, até obter este direito. Dois episódios são ilustrativos das resistências encontradas. O primeiro foi o da gaúcha e cirurgiã dentista Izabel de Souza Matos. Em 1885, ela requereu alistamento eleitoral, apoiada na Lei Saraiva que garantia o voto a quem tivesse título científico, e seu pedido foi atendido. Quando veio a República, Izabel procurou a comissão de alistamento eleitoral para fazer valer seu direito, mas o Ministro do Interior deu um parecer contrário, julgando o pedido de Izabel de Matos absolutamente improcedente.
O Século XX foi um período de lutas políticas e eclosão efetiva da luta das mulheres pela conquista da cidadania. Lutaram pelo direito ao voto, o fim dos regimes autoritários assim como pela eqüidade de gênero em vários setores. Bertha Lutz, líder feminista e bióloga paulistana foi uma das fundadoras da FBPF – Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino, liderando grande parte do movimento sufragista da década de 1920. Fez parte da elaboração do Código Eleitoral, em 1931. Carolina Maria de Jesus, descendentes de escravos, natural de Sacramento (MG), tornou-se escritora à partir de suas anotações onde retratava seu cotidiano de mulher, negra e favelada em São Paulo. Autora do “best-seller” Quarto de despejo, entre outros. Nieta Campos da Paz, ativista política, natural de São Paulo (SP), lutou pelas liberdades democráticas. Militou em diversas organizações e movimentos defendendo os direitos das mulheres e a paz mundial. Integrou o PCB. A mineira Lélia Gonzalez, antropóloga e militante negra, esteve na década de 1970 a frente da fundação do Movimento Negro Unificado, tendo sido uma das protagonistas das discussões sobre gênero e raça no país. Ângela Borba, historiadora, integrou a Ação Popular (AP), foi co-fundadora do partido dos trabalhadores (PT) e do grupo Nós Mulheres (RJ) e grande ativista no encaminhamento de políticas públicas para as mulheres e militante feminista nacionalmente reconhecida.
O século XXI desponta trazendo na bagagem maior participação das mulheres na educação, mercado de trabalho, nos movimentos sociais e na política. Nem por isso as mulheres deixaram de entrar no por século XXI trazendo velhas questões, como exemplo, a modesta presença das mulheres no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores, no Executivo (em todos os níveis) e nos partidos políticos.
Os estudos de gênero, para além do modismo, foram fundamentais para revelar a participação das mulheres ao longo do processo histórico, apresentando novos conteúdos que ajudam a superar a invisibilidade feminina na história oficial.
Conscientes do seu papel político no processo de transformação social, seja nas relações de gênero, sejam nas relações étnico-raciais, no relacionamento com as diferentes esferas de poder e com os novos parceiros, as mulheres continuam impondo outros desafios, tais como a defesa da autonomia, a luta pela superação das desigualdades econômicas e sociais, pela liberdade e igualdade de gênero e pela radicalidade da democracia em casa, no país e no mundo.
Síntese elaborada por Schuma Schumaher e Sandra Regina Ribeiro